“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.
Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.
O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.
Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.
A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.
Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.
Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.
Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.
[youtube id=https://www.youtube.com/watch?v=ZVgHPSyEIqk]
Em Vida Precária, escrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)
Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?
“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)
Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).
Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.
O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.
A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…
Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena.
Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).
Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.
Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture e os “jacobinos negros”.
A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:
“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)
O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.
Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?
O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.
É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”
Gaza, Julho de 2014
Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.
Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:
“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)
A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…
Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.
Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.
A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”
QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020
SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Vida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos Bichos – Animal Farm. Via site da BBC.
OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:
Publicado em: 30/05/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia